Reflexão sobre o superior interesse da criança

Enquadramento previsto na Lei 65/2020, de 4 de novembro

Artigo 05/11/2020

Reflexão sobre o superior interesse da criança

Escrito por Mariana Camisão e Ana del Pino Alves

O Direito da Família tem, desde o seu nascimento, sofrido inúmeras transformações, que acompanham, ou pelo menos seguem, a evolução social. No campo do direito parental estas transformações são ainda mais claras.

 

Em 1965 a relação familiar era hierarquizada, com um predomínio da figura do pai - o Código Civil (CC) em vigor à altura consagrava que ‘’as mães participam no poder paternal, e devem ser ouvidas em tudo o que disser respeito aos interesses dos filhos; mas é ao pai que especialmente compete, durante o matrimónio, como chefe de família, dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto em juízo como fora dele.’’

 

A lei civil actual, por seu lado, consagra uma igualdade entre os pais no que concerne às responsabilidades parentais, quer na constância do casamento (artigo 1901.º do CC), quer depois de este ser dissolvido por divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação (1906.º, n.º 1 do CC), salvo casos excepcionais. Além da igualdade entre os pais, a grande evolução no Direito da Família foi o reconhecimento da criança como sujeito de direitos e a consagração da figura do ‘’superior interesse da criança’’.

 


Esta figura – o superior interesse da criança – consagrada no princípio 2.º da Declaração dos Direitos da Criança de 1959, bem como no artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, tem vindo a ser transposta para a legislação portuguesa, adquirindo cada vez mais importância e dando origem a várias revisões legislativas, como foi o caso da Lei n.º 65/2020, de 4 de Novembro, e que procede à alteração do artigo 1906.º do Código Civil.

 


Ao aditar ao mencionado artigo a formulação ‘’Quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos (…)’’, o legislador veio consagrar algo que anteriormente a lei não impedia (número 5 e 7 do artigo 1906.º do CC, na redação anterior à Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro), mas que não estava expressamente previsto. A maioria da doutrina e da jurisprudência defendia a admissibilidade legal da residência alternada, desde que fundada no acordo dos progenitores e apenas em casos de ausência de conflitos entre estes.

 

Com efeito, antes da publicação desta lei vários arestos jurisprudenciais iam no sentido de que a residência alternada podia ser fixada pelo Tribunal sem acordo dos progenitores, desde que acautelando o superior interesse da criança, designadamente o Acórdão do TRC de 24/10/2017, proc. 273/13.9TBCTB-A.C1, Acórdão do TRG de 02/11/2017, proc. 996/16.0T8BCL-C.G, Acórdão do TRE de 09/11/2017, proc. 1997/15.1T8STR.E1, Acórdão do TRE de 07/06/2018, proc. 4505/11.0TBPTM.E1, Acórdão do TRL de 21/11/2019, proc. 2334/17.6T8CSC.L1-2, entre outros, onde se podem ler reflexões como ‘’A lei não exige o acordo de ambos os pais na fixação da residência alternada do filho, devendo a solução ser encontrada de acordo com o seu interesse e ponderando todas as circunstâncias relevantes.’’ ou ‘’Mesmo não existindo acordo dos pais, a alternância de residências é uma solução adequada ao exercício conjunto das responsabilidades parentais – artigo 1906 do CC –, salvo se o desacordo se fundamentar em razões factuais relevantes ou se mostrar que a medida não promove os interesses do filho.’’

 

Ainda que tenha ficado aquém das expectativas de muitos que entendem que a residência alternada deve ser consagrada como regra ou solução preferencial, a nova lei veio possibilitar a adoção deste regime pelo Tribunal, mesmo sem o acordo dos progenitores. Basta, para tanto, que tal corresponda ao superior interesse da criança e que sejam ponderadas todas as circunstâncias relevantes, sem prejuízo do que possa ficar estabelecido quanto a pensão de alimentos quando a criança permaneça o mesmo período de tempo com um e outro progenitor.

 


O legislador veio assim enfatizar que nas situações que envolvem crianças o que deve prevalecer é o superior interesse destas, independentemente da relação mais ou menos tensa entre os pais. Tal se evidencia também pelo aditamento de um n.º 9 ao artigo 1906.º do CC, em que se consagra um Princípio de Audição da Criança. Assim, esta Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro, não trazendo propriamente uma revolução ao Direito da Família, veio recordar-nos que nem sempre o melhor para os pais é o melhor para as crianças.

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